quinta-feira, março 22, 2007

A POLÉMICA

Artur Azevedo

O Romualdo tinha perdido, havia já dois ou três meses, o seu lugar de redactor numa folha diária; estava sem ganhar vintém, vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que, levado por uma quimera da juventude, se lembrara de abraçar uma carreira tão incerta e precária como a do jornalismo.
Felizmente era solteiro, e o dono da "pensão" onde ele morava fornecia-lhe casa e comida a crédito, em atenção aos belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatários.
Cansado de oferecer em pura perda os seus serviços literários a quanto jornal havia então no Rio de Janeiro, o Romualdo lembrou-se, um dia, de procurar ocupação no comércio, abandonando para sempre as suas veleidades de escritor público, os seus desejos de consideração e renome.
Para isso, foi ter com um negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido seu condiscípulo no Colégio Vitório, a quem jamais ocupara, embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse, quando raras vezes se encontravam na rua.
O negociante ouviu-o, e disse-lhe:
- Tratarei mais tarde de arranjar um emprego que te sirva; por enquanto preciso da tua pena. Sim, da tua pena. Apareceste ao pintar! Foste a sopa que me caiu no mel! Quando entraste por aquela porta, estava eu a matutar, sem saber a quem me dirigisse para prestar-me o serviço que te vou pedir. Confesso que não me tinha lembrado de ti... perdoa...
- Estou às tuas ordens.
- Preciso publicar amanhã, impreterivelmente, no Jornal do Comércio, um artigo contra o Saraiva.
- Que Saraiva?
- O da rua Direita.
- O João Fernandes Saraiva?
- Esse mesmo.
- E queres tu que seja eu quem escreva esse artigo?
- Sim. Ganharás uns cobres que não te farão mal algum.
A essa palavra "cobres", o Romualdo teve um estremeção de alegria; mas caiu em si:
- Desculpa, Caldas; bem sabes que o Saraiva é, como tu, meu amigo... como tu, foi meu companheiro de colégio...
- Quando conheceres a questão que vai ser o assunto desse artigo, não te recusarás a escrevê-lo, porque não admito que sejas mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: não quero insultá-lo, não quero dizer nada que o fira na sua honra, quero tratá-lo com luva de pelica. Sou eu o primeiro a lastimar que uma questão de dinheiro destruísse a nossa velha amizade. Escreves o artigo?
- Mas...
- Não há mas nem meio mas! O Saraiva nunca saberá que foi escrito por ti.
- Tenho escrúpulos...
- Deixa lá os teus escrúpulos, e ouve de que se trata. Presta-me toda a atenção. E o Caldas expôs longamente ao Romualdo a queixa que tinha do Saraiva. Tratava-se de uma pequena questão comercial, de um capricho tolo que só poderia irritar, um contra o outro, dois amigos que não conhecessem o que a vida tem de áspero e difícil O artigo seria um desabafo menos do brio que da vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena hábil poderia, efectivamente, evitar uma injúria grave.
O Romualdo, que há muito tempo não pegava numa nota de cinco mil-réis, e apanhara, na véspera, uma descompostura de lavadeira, cedeu, afinal, às tentadoras instâncias do amigo, e
no próprio escritório deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente.
- Muito bem! - exclamou o Caldas, depois de três leituras consecutivas.
- Se eu soubesse escrever, escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente a questão!
E, depois de um passeio à burra, meteu um envelope na mão de Romualdo, dizendo-lhe:
- Aparece-me daqui a dias: vou procurar o emprego que desejas. - A época é difícil, mas há de se arranjar.
O Romualdo saiu, e, ao dobrar a primeira esquina, abriu sofregamente o envelope: havia dentro uma nota de cem mil-réis! Exultou! Parecia-lhe ter tirado a sorte grande!
Na manhã seguinte, o ex-jornalista pediu ao dono da "pensão" que lhe emprestasse o Jornal do Comércio, e viu a sua prosa "Eu e o sr. João Fernandes Saraiva" assinada pelo Caldas; sentiu alguma coisa que se assemelhava ao remorso, o mal-estar que acomete o espírito e se reflecte no corpo do homem todas as vezes que este pratica um ato inconfessável, e aquilo era uma quase traição. Entretanto almoçou com apetite.
À sobremesa entrou na sala de jantar um menino, que lhe trazia uma carta em cujo sobrescrito se lia a palavra "urgente".
Ele abriu-a e leu:
"Romualdo. - Preciso falar-lhe com a maior urgência. Peço-lhe que dê um pulo ao nosso escritório hoje mesmo, logo que possa. Recado do - João Fernandes Saraiva."
Este bilhete inquietou o ex-jornalista. Com certeza, pensou ele, o Saraiva soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente alguém me viu entrar em casa do Caldas, demorar-me no escritório... desconfiou da coisa e foi dizer-lhe...
Mas para que me chamará ele?
O seu desejo era não acudir ao chamado; alegar que estava doente, ou não alegar coisa alguma, e lá não ir; mas o menino de pé, junto à mesa do almoço, esperava a resposta... Era impossível fugir!
- Diga ao seu patrão que daqui a pouco lá estarei.
O menino foi-se.
O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o café, saiu, e dirigiu-se ao escritório do Saraiva,
receoso de que este o recebesse com duas pedras na mão.
Foi o contrário. O amigo recebeu-o de braços abertos, dizendo-lhe:
- Obrigado por teres vindo! Estava com medo de que o pequeno não te encontrasse! Vem cá! E levou-o para um compartimento reservado.
- Leste o jornal do Comércio de hoje?
- Não - mentiu prontamente o Romualdo. - Raramente leio o Jornal do Comércio.
- Aqui o tens; vê que descompostura me passou o Caldas!
O Romualdo fingiu que leu.
- Isso que aí está é uma borracheira, mas não é escrito por ele! - bradou o Saraiva. - Aquilo é uma besta que não sabe pegar na pena senão para assinar o nome!
- O artigo não está mau... Tem até estilo...
- Preciso responder!
- Eu, no teu caso, não respondia...
- Assim não penso. Preciso responder amanhã mesmo no próprio Jornal ao Comércio e, se te chamei, foi para pedir-te que escrevas a resposta.
- Eu?...
- Tu, sim! Eu podia escrever mas... que queres?... Estou fora de mim!...
- Bem sabes - gaguejou o Romualdo - que sou amigo do Caldas. Não me fica bem...
- Não te fica bem, por quê? Ele com certeza não é mais teu amigo que eu! Depois, não é intenção minha injuriá-lo; quero apenas dar-lhe o troco!
No íntimo o Romualdo estava satisfeito, por ver naquele segundo artigo um meio de atenuar, ou, se quiserem, de equilibrar o seu remorso.
Ainda mastigou umas escusas, mas o outro insistiu:
- Por amor de Deus não te recuses a este obséquio tão natural num homem que vive da pena! Tu estás desempregado, precisas ganhar alguma coisa...
O Romualdo cedeu a este último argumento, e, depois de convenientemente instruído pelo Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena e escreveu ali mesmo o artigo.
Reproduziu-se então a cena da véspera, com mudança apenas de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler o artigo, exclamou: - Bravo! Não podia sair melhor! - e, tirando da algibeira um maço de dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil-réis e entregou-a ao prosador.
- Oh! Isto é muito, Saraiva!
- Qual muito! Estás a tocar leques por bandurra: é justo que te pague bem!
- Obrigado, mas olha: recomendo-te que mandes copiar o artigo, porque no jornal pode haver alguém que conheça a minha letra.
- Copiá-lo-ei eu mesmo.
- Adeus.
- Adeus. Se o Caldas treplicar, aparece-me!
- Está dito.
No dia seguinte, o Caldas entrou muito cedo no quarto do Romualdo, com o jornal do Comércio na mão.
- O bruto replicou! Vais escrever-me a tréplica!
E batendo com as costas da mão no jornal:
- Isto não é dele... Aquilo é incapaz de traçar duas linhas sem quatro asneiras... mas ainda assim, quem escreveu por ele está longe deter o teu estilo, a tua graça... Anda! Escreve!...
E o Romualdo escreveu...
Durante um mês teve ele a habilidade de alimentar a polémica, provocando a réplica, para que não estancasse tão cedo a fonte de receita que encontrara. Para isso fazia insinuações vagas,
mas pérfidas, e depois, em conversa ora com um ora com outro, era o primeiro a aconselhar a retaliação e o esforço.
Tanto o Caldas como o Saraiva se mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo nunca em dias de sua vida se viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores lhe diziam: - Escreve! Escreve! Eu quero ser o último!
Por fim, vendo que a questão se eternizava, e de um momento para o outro a sua duplicidade podia ser descoberta, o Romualdo foi gradualmente adoçando o tom dos artigos, fazendo, por sua própria conta, concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra de forma.
E o público admirou essa polémica, em que dois homens discutiam com estilos tão semelhantes que o próprio estilo pareceu harmonizá-los.
O Caldas cumpriu a sua promessa: o Romualdo pouco depois entrou para o comércio, onde ainda hoje se acha, completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo.

terça-feira, março 06, 2007

COMO O DIABO AS ARMA!
Artur Azevedo

O Sr. Paulino era o marido mais irrepreensível desta cidade em que são raríssimos os maridos Irrepreensíveis; entretanto (vejam como o diabo as arma!), um dia foi morar mesmo defronte da casa onde ele morava, na Rua Frei Caneca, uma linda mulher, que lhe deu volta ao miolo.

Apesar de casado com uma senhora ainda bonita e frescalhona, mais nova dez anos que ele, que orçava pelos quarenta e tantos, o Sr. Paulino resolveu chegar à fala com a sua encantadora vizinha, que, pelos modos, era livre como os pássaros. Pelo menos morava sozinha, e recebia de vez em quando visitas misteriosas de três ou quatro sujeitos discretos que, antes de entrar, olhavam para trás, para adiante e para cima, o que era um meio mais seguro de serem observados.

Essas visitas encorajaram necessariamente o Sr. Paulino; mas... como chegar à fala?... Da sua janela, onde ele raras vezes aparecia, limitando-se a espiar a vizinha por trás das venezianas, o pobre namorado jamais se animaria a fazer o menor gesto suspeito. Resolveu, pois, esperar que alguma circunstância fortuita o favorecesse, ou por outra, que o diabo as armasse.

Não tardou a aparecer a circunstância fortuita, que o diabo armou: uma tarde em que o Sr. Paulino voltava do emprego de guarda-livros de uma importante casa comercial, viu passar na Avenida a linda mulher que tanto o impressionara, e acompanhou-a até a estação do Jardim Botânico, onde ela tomou um bonde !para o Leme.

O Sr. Paulino, já se sabe, tomou o mesmo bonde e sentou-se ao lado dela, que lhe cedeu gentilmente a ponta. A sujeita, que era matreira, percebeu que tinha sido acompanhada e aplanava o terreno para uma explicação.

O guarda-livros cobriu o rosto com A Notícia e, fingindo que estava lendo, murmurou:

- Preciso muito falar-lhe.

- Pois fale - respondeu ela fazendo com o leque o mesmo que o outro fazia com a rósea folha vespertina.

- Aqui não; em sua casa. Quando há de ser?

- Quando quiser.

- Amanhã?

- Amanhã, seja! Sabe onde é?

- Sei; mas só poderei lá ir depois das dez horas da noite, quando a rua estiver completamente deserta.

- Por quê?

- Depois lhe direi.

- Bom. Esperá-lo-ei às dez e meia.

- Adeus!

- Até amanhã!

E o Sr. Paulino saltou no Largo da Lapa.

No dia seguinte à hora indicada, o guarda-livros entrava em casa da vizinha, cuja porta achou
entreaberta.

- Mas por que todo este mistério? - perguntou a tipa, que o recebeu como se o conhecesse de
longos anos.

- É porque moram ali defronte uns conhecidos meus.

- Quem? O tal Paulino?

- Conhece-o?

- De nome apenas; nunca o vi. Querem ver que também você gosta da mulher dele?

- Da mulher de quem?... do Paulino?...

- Sim, faça-se de novas! Aquela é pior do que eu!

- Mas de que Paulino fala a senhora? - perguntou o pobre homem, já tremulo e agitado.

- Do Paulino que mora ali defronte. A ele nunca o vi, mas tenho visto os amantes da mulher!

- Os amantes da mulher?!...

- Sim, coitado. É ele a sair de casa, e os outros a entrar!...

- Os outros?... Então são muitos?!...

- Mais de um é, com certeza... Já vi dois: um rapaz alto, louro, rosado, elegante.

- Deve ser o Gouveia!

- E o outro baixinho, cheio de corpo, de bigode e pêra, pince-nez azul...

- Deve ser o Magalhães! Dois amigos!...

E o Sr. Paulino caiu desalentado numa cadeira. Tudo lhe andava à roda. Sentia as faces em
fogo. Receou uma congestão cerebral.

A mulher notou que ele estava incomodado, e foi buscar água-de-colónia, que o reanimou.

- Fui, talvez, indiscreta, disse ela; o tal Paulino é seu amigo, e você não sabia...

- O tal Paulino sou eu, minha senhora; sou eu em carne e osso, e agradeço-lhe a informação. Se não viesse à sua casa, jamais saberia o que se passa na minha, e continuaria a ser um marido ridículo sem o saber! Para alguma coisa me serviu essa aventura amorosa!

E o Sr. Paulino saiu sem exigir da vizinha, atónita, outra coisa além de um copo d'água.

No dia seguinte pôs a mulher fora de casa, e cortou a chicote a cara do Gouveia. O Magalhães escondeu-se e não foi encontrado, mas não perde por esperar.

Ora, ai têm como o diabo as arma!